sexta-feira, 7 de outubro de 2011

DAS FELICIDADES - I

Em artigo publicado na edição de julho de 2011 da revista Cult, a filósofa Marcia Tiburi esboça uma reflexão sobre os descaminhos da noção de felicidade corrente nas sociedades modernas. De acordo com a autora, tem sido perigoso usar a palavra felicidade em razão do seu emprego nas falsas promessas da publicidade e da literatura de autoajuda. O “ideal ético de uma vida justa” formulado pela filosofia grega clássica teria se transformado numa “indústria cultural da felicidade”. Sob o capitalismo, a noção de felicidade estaria associada ao consumo, sendo vendida em “discursos prontos” nos quais as pessoas estariam cada vez mais inclinadas a acreditar.

Para a autora, a fim de preservar o sentido transcendente da felicidade, seria necessário separar a enganosa “felicidade publicitária” que promove a sacralização do consumo da felicidade filosófica, esse “estado natural do pensamento reflexivo”. Confrontando as duas noções de felicidade propostas, Tiburi busca mostrar a superioridade moral e legitimidade da felicidade que significa “o prazer da reflexão que ultrapassa qualquer contentamento” em relação à felicidade capitalista, produtora de “zumbis” que vagam pelos shoppings e farmácias em busca de alento.

Na verdade, o artigo tenta dar conta da conexão entre felicidade e mídia criada nas sociedades modernas, na medida em que o ponto de ataque é a “felicidade publicitária”. Tiburi afirma que “a ausência de pensamento característica dos nossos dias” tornaria os indivíduos incapazes de agir lucidamente. Desorientados, eles passariam a confiar cada vez mais nos “discursos prontos” que prometem a felicidade, nas “verdades estabelecidas” oriundas de diversas fontes, entre elas a propaganda. Esta última promoveria uma “sacralização” da felicidade capitalista, aquela que estaria ao “alcance dos dedos e não promete um depois”. Para a autora, essa noção de felicidade “pronta” associada ao consumo seria “a morte da felicidade por plastificação”.

O artigo parece moldado numa tradicional matriz de pensamento empenhada na denúncia dos “males da civilização”, portadora da dimensão romântica que animou em parte o desenvolvimento das ciências humanas. Ele se inscreve no longo rol de diagnósticos cujo objetivo é desvelar o caráter problemático da experiência moderna da felicidade. E, como tantos outros do gênero, parece atribuir pouca ou nenhuma importância às experiências subjetivas dos indivíduos em nome de princípios normativos pretensamente transcendentais. Nesse sentido, o que deveria ser a experiência da felicidade segundo um padrão explicitamente restritivo (“condição natural dos filósofos”) torna-se mais relevante do que a felicidade tal qual é “vivida” pelos indivíduos em seus contextos particulares.

Definir o que é a felicidade tem sido tarefa destinada ao fracasso como indicam as controvérsias sobre a matéria amparadas por um longo esforço de reflexão sobre o “bem supremo”. Um filósofo da envergadura de Immanuel Kant, por exemplo, afirma que a felicidade possui um caráter tão indeterminado que não se consegue defini-la de forma definitiva e coerente. Essa asserção é ratificada por muitos estudiosos do tema que se deparam com essa dificuldade. Em contrapartida, há os que optam por uma abordagem pragmática, elegendo determinados aspectos da existência das pessoas como definidores de estados emocionais reconhecidos como felicidade.

A conexão entre a mídia, o consumo e a experiência da felicidade nas sociedades modernas ocidentais parece ser um dado inegável. A relação entre a ampliação do progresso material e a felicidade, expressão de determinada noção de civilização, está firmemente arraigada no imaginário moderno orientado pelo primado da razão do Iluminismo europeu. A ciência, a técnica e a política seriam responsáveis por prover o bem-estar à humanidade, e a felicidade passa a ser tomada como um valor que deve orientar todas as esferas da existência. A felicidade deveria ser experimentada por todos, aqui e agora.

A ascensão e a consolidação da cultura de massa nos séculos XIX e XX reorientam a discussão sobre a felicidade. O imaginário midiático compartilhado por parcelas cada vez mais amplas da humanidade redefiniria os padrões pelos quais avaliar as possibilidades de uma existência “feliz”. As promessas de felicidade embutidas nas realizações e nos discursos da modernidade, nesse sentido, estariam associadas à mídia. A onipresença da felicidade como tema e como ideia organizadora da própria fruição dos produtos da mídia assinalam fortemente essa vinculação. Um dos principais fundamentos da modernidade – o direito à felicidade individual – e uma da suas instituições mais representativas – a mídia – estariam, portanto, articulados. Da prensa tipográfica de Gutenberg ao ciberespaço, o sistema da mídia, assim como outras instituições modernas, repousaria na ideia de que cabe à humanidade obter e conservar um determinado estado emocional concebido como felicidade. E imaginar essa felicidade estaria entre as tarefas socialmente outorgadas à mídia.

Continua na próxima coluna.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

UM ANTIÁCIDO PARA A MODERNIDADE

Um permanente mal-estar ronda o cotidiano moderno. E não seria difícil identificar suas manifestações em vários aspectos da vida. Da cultura à política, da economia ao sexo, tudo parece ser causa de desconforto para determinada parcela da humanidade. O tédio, a indiferença e o fastio caracterizariam esse “espírito do tempo”. Não é por outro motivo que se procura o “alívio imediato”, de todas as formas, desesperadamente

Na cultura – o acesso por excelência às entranhas da vida moderna – o sintoma mais evidente seria o rebaixamento mais ou menos generalizado das manifestações estéticas à banalidade. No atual estágio da modernidade, isso tem a ver com a crítica que se faz à produção simbólica da mídia. Nessa perspectiva, não tem feito outra coisa quase a totalidade da programação televisiva. São os reality shows, os programas de exploração das misérias humanas, de jogos e de auditório suficientes para indignar os críticos. O cinema também não escapa a essa lógica do mal-estar: nove entre dez filmes tem como principal ingrediente explosões, tiros à queima-roupa e uma história, em geral, enraizada no vazio.

Caracterizar esses aspectos da cultura como sintomas indica bem que o mal-estar não seria uma consequência dessas manifestações, como poder-se-ia ingenuamente pensar. Essas manifestações, na verdade, podem ser tomadas como tentativas de alívio dos desconfortos de viver. O que se procura é escapar de uma insatisfação que está relacionada às injunções da vida nas condições daquilo que se convencionou chamar de modernidade. Aliás, para alguns autores estaríamos vivendo a pós-modernidade; para outros, esta seria ainda uma fase da modernidade, “modernidade tardia”, “modernidade reflexiva”, “modernidade líquida”, “hipermodernidade”, entre outras denominações. O mal-estar permaneceria o mesmo, independentemente do qualificativo.

O que parece ocorrer é uma hipertrofia da insatisfação e uma ampliação das situações percebidas como desagradáveis pelos indivíduos. O desconforto inflado pode ser notado em pelo menos duas situações exemplares: o horror à introspecção e a tendência a transformar situações até então integradas ao fluxo da vida em “problemas”. E esse é o cenário de sensibilidades em que opera a mídia. Isso não significa que a mídia se aproveite das carências ou fraquezas dos indivíduos para insidiosamente submetê-los, dominá-los, conduzi-los. Parece menos fantasioso pensar que ela oferece, na verdade, é uma espécie de lenitivo para as contrariedades, dissabores e insatisfações da vida cotidiana. Isso também não quer dizer que se recorra à mídia como a uma farmácia. O mal-estar moderno possuiria um contorno difuso, isto é, embora os indivíduos o sintam, desconhecem sua causa e também o remédio que o eliminaria completamente. O alívio temporário do mal-estar pode ser encontrado na religião, nas drogas, nas terapias ou mesmo em práticas mais banais. Não se pode negar que há nas práticas cotidianas momentos de alívio, de mitigação das insatisfações. Uma delas seria o consumo dos produtos da mídia, nas condições de normalidade e cotidianidade em que ocorre para significativa fração da humanidade.

A primeira das situações tomadas como sintomas da hipertrofia do mal-estar – a tendência a evitar a introspecção a qualquer custo – pode ser ilustrada pelo consumo intensivo de produtos da mídia. Não é estranha a um cada vez maior número de indivíduos a incorporação da mídia “naturalmente” ao cotidiano. A televisão deve estar ligada, mesmo que a ela não se preste atenção; no carro, o rádio, o CD player ou qualquer outro aparelho de reprodução de sons e imagens fazem parte dos instrumentos necessários à condução do veículo; em diversos outros ambientes é preciso ter algo com que se “distrair”, individual ou coletivamente. A música é muitas vezes ouvida em alto volume; um programa de televisão precisa ser ágil, veloz, os jornais e revistas devem despertar o fascínio, a curiosidade, encher o cotidiano. A internet, por sua vez, é a tentativa mais próxima de realização da fantasia de comunicação total que paira na atmosfera. 

Tudo remete a uma janela permanentemente aberta, a uma paisagem em constante e acelerada mudança. Continuamente solicitado pelos estímulos exteriores, o indivíduo cada vez menos teria oportunidade de encontrar consigo mesmo. A introspecção, percebida como um terrível desconforto, deve ser, sempre que possível, afastada do cotidiano. Não há porque se defrontar com a incômoda companhia da interioridade se há um mundo de sons e imagens que conforta, apazigua e suspende a dor de “ser por si” do homem moderno.

A inflação do desconforto também se deixa perceber pela profusão de materiais midiáticos destinados a resolver toda sorte de “problemas” do indivíduo. Programas de televisão e de rádio, revistas, livros de autoajuda, filmes, músicas e “terapias comunicacionais” parecem empenhados em resgatar os navegantes da modernidade à deriva no oceano de opções de estilo de vida. Engordar, emagrecer, envelhecer, viajar ou ficar em casa, tudo se transforma num problema. As relações afetivas e profissionais, o sexo, a roupa, os sentimentos, atividades banais do cotidiano, tudo passa a ser tema de conselhos, orientações, modelos e fórmulas para o comportamento. Uma suposta inabilidade crônica de “levar a vida” parece atingir as pessoas, que recorreriam a esses “manuais de sobrevivência”. A julgar pelo volume e variedade desses materiais, quase todos os comportamentos para a condução da vida seriam causa de perplexidade, dúvida, inquietação. Por conseguinte, se o rol de questões percebidas como problemáticas cresce, multiplicam-se as “soluções” oferecidas pela mídia. Para cada problema, independentemente da sua natureza, uma solução. Às vezes, várias, transformando a escolha da solução adequada em mais um problema.

Defrontar-se com a própria interioridade em situação de normalidade na corrente da vida e buscar soluções para os próprios problemas parecem angustiar o indivíduo moderno. Viver por si, nas condições que a modernidade forjou, causa náusea, vertigem, desconforto, incômodo, mal-estar. Busca-se, então, um antiácido existencial para esse estado de coisas. Desesperadamente.

domingo, 21 de agosto de 2011

UM MUNDO PEQUENO

Na capa da revista Vip de novembro de 2005, uma chamada anunciava que Angelina Jolie era a mulher mais “gostosa” do mundo. A chamada seguinte prometia revelar quais eram as cem mulheres mais sexy do planeta, dentre as quais se destacava a atriz americana. Como tantos outros mecanismos da mídia, esse jogo de linguagem tende a naturalizar uma visão de mundo bastante peculiar.

Tais anúncios sugerem, num primeiro momento, que a revista tenha examinado toda a população feminina do mundo à procura de mulheres que se enquadrassem nos padrões de sexualmente desejáveis por ela veiculados. Além disso, faz pensar na incontornável complexidade de uma seleção dessa natureza, pois, de cerca de três bilhões de seres humanos do sexo feminino, restou apenas uma centena de mulheres eleitas.

Uma chamada de capa de revista como essa é o resultado de um processo de redução inerente ao modo de operação da mídia. No caso das cem mais sexy, o universo tomado pela publicação é o das mulheres que, de alguma forma, transitam na mídia; num determinado segmento dela, para ser mais preciso. Essa é uma restrição violenta do mundo ao âmbito da produção midiática. Numa fórmula, também necessariamente redutora: o que não está na mídia não existe. Não é por acaso que a mulher mais desejável do mundo, de acordo com a Vip, seja justamente uma atriz de cinema notadamente submetida à superexposição, e que as cem mais sexy do planeta se dividam em atrizes, cantoras, modelos, e outras “celebridades” da mídia.

Mas esse processo não ocorre apenas dessa forma. Quando os jornais e os noticiários de televisão apresentam a sua editoria “mundo”, um pouco mais de atenção logo revela as dimensões desse mundo, pois as notícias se referem apenas a determinadas partes do planeta e a alguns assuntos julgados de interesse do público por aquele veículo. Numa situação mais próxima, o que os noticiários dos jornais de grandes metrópoles chamam de “cidade” refere-se a um pequeno grupo de reportagens, notícias e notas que pretendem dar conta de uma vasta quantidade de fatos ocorridos nessas regiões. O mundo da mídia é necessariamente um mundo reduzido.

O processo de redução é constitutivo da mídia, ou seja, é necessário ao seu modo de produção corrente. Ele limita o universo de escolhas de fatos, personagens e visões de mundo, criando uma “esfera midiática” que possui uma geografia e uma temporalidade próprias. Por exemplo, quando aponta uma música como “a melhor de todos os tempos”, a mídia relega à inexistência a maior parte do que foi considerado música ao longo da história humana, normalmente efetuando suas escolhas numa faixa de tempo estreita de um repertório também restrito, o da cultura ocidental ou ocidentalizada.

Embora o consumidor dos bens simbólicos da mídia possa ter plena consciência do processo de redução, ele aceita acreditar no fragmento apresentado como uma totalidade. Uma determinada notícia pode ser perfeitamente inteligível mesmo que esteja contida em três parágrafos de uma coluna de jornal. Constitui uma impossibilidade lógica apresentar uma notícia completamente contextualizada. O contexto de qualquer fato, levada a ideia ao extremo, é a história humana. Uma notícia é antes de tudo a narrativa de um fato isolado e a eleição de determinado ponto de vista como pleno de sentido para o público consumidor. Mas só há sentido na medida em que se restringe o mundo em que é construído e circula tal relato. Uma notícia não é uma notícia em si, não possui uma essência, mas ganha sentido quando relacionada a um mundo delimitado, conhecido.

É esse, em termos ideais, o mundo habitado pelo consumidor de produtos midiáticos. Por isso ele pode acreditar que Angelina Jolie seja realmente a mulher mais “gostosa” do mundo, como afirma a revista. Dentro da “esfera midiática”, tomada como a totalidade condensada da experiência humana, talvez ele não tenha dúvida alguma disso.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

ESPONTANEIDADE MIDIÁTICA

Quando percebem que há um microfone, uma câmara fotográfica, de cinema ou de televisão por perto, é comum as pessoas se prepararem, com um ar de estudada espontaneidade, para terem a fala e a imagem capturadas. Longe de ser um gesto instintivo, essa preparação do corpo é fruto de um longo aprendizado que se efetiva na intensa relação estabelecida entre as pessoas e a mídia nas sociedades modernas. A presença constante do jornal, da revista, do rádio, da televisão, do disco, do videocassete, do CD e das redes de computadores no cotidiano de grande parcela da humanidade supostamente “naturaliza” essa relação. Imersas na atmosfera da tecnocultura, as pessoas aprendem a dominar as particularidades dessa convivência. Um teórico da comunicação como Muniz Sodré, por exemplo, no livro Antropológica do espelho, considera que a mídia cria uma esfera da vida à parte, um novo ambiente da existência humana.

Uma contundente ilustração dessa espontaneidade midiática são os reality shows. A crer que não haja um roteiro para a atuação dos personagens confinados na casa-cenário do Big Brother Brasil produzido pela Rede Globo – o mais famoso dos programas desse gênero na televisão brasileira –, é notável como os participantes se mostram prontos para desempenhar seus papéis. Não está aqui em discussão a qualidade e os propósitos do programa, mas a sua estrutura de metódica observação da “espontaneidade” da convivência dos participantes.

Desse ponto de vista, eles não estariam representando no sentido teatral, mas acionando uma espontaneidade “escrita” na linguagem da televisão em particular e da mídia em geral. As suas ações estariam de acordo com o ambiente existencial que a mídia proporciona. Em outras palavras, eles estariam verdadeiramente “existindo” na ambivalente esfera midiática, que ora se entrelaça com o real histórico, ora dele se distancia.

Nas bordas desse ambiente existencial, o acionamento da espontaneidade aprendida não é menos intenso. Basta assistir a uma reportagem qualquer de televisão, por exemplo, sobre uma tubulação de água rompida numa rua movimentada e os consequentes transtornos causados. Lá estarão as pessoas construindo a cena, representando o seu papel de morador, de comerciante, de transeunte, de autoridade. Olho na câmera, voz modulada, expressão adequada ao veículo, assim ocorre a existência midiática. Pode-se dizer que cada um sabe como existir nesse mundo “dentro” da comunicação de massa, que entende e sabe manejar as regras dessa existência.

No que diz respeito ao campo estritamente da política, e a propósito da recorrente discussão que nasce das denúncias de corrupção que envolvem, entre outros aspectos, os gastos com propaganda eleitoral, a técnica da espontaneidade parece ser um tema inevitável. Há quem sugira um novo formato de programa eleitoral, principalmente na televisão, de menor custo, em que a apresentação pelo candidato de sua plataforma seria o elemento principal. Em tal formato, alegam seus defensores, o eleitor poderia mais bem avaliar o candidato, sem o aparato de toda sorte de efeitos que hoje grassam nos programas eleitorais, pois assim os candidatos apareceriam mais “verdadeiros”.

No entanto, isso parece constituir uma impossibilidade, uma vez que a prática política moderna não prescinde da técnica da “espontaneidade”. Qualquer candidato em face da mídia aciona seus recursos de calculada naturalidade. A espontaneidade midiática nada tem a ver com a noção de “verdade”. Aliás, o que por muito tempo se considerou a “verdade” está posto sob suspeita pela ambiência contemporânea da mídia. Trata-se de uma outra esfera de valores onde a “verdade” tem um outro significado e outro peso.

A convivência intensa com todo o aparato da tecnocultura, de certa forma, ensinou ao indivíduo moderno a passar de um ambiente existencial ao outro, do real histórico ao mundo da mídia e vice-versa, sem dificuldades. Não haveria mais o tipo de medo revelado pelos índios nos primeiros contatos com a câmera fotográfica dos antropólogos de que aquela “caixa” pudesse capturar suas almas. O indivíduo moderno estaria permanentemente preparado para a existência midiática.

domingo, 7 de agosto de 2011

“SÓ TOMAVA CHÁ, QUASE QUE FORÇADO VOU TOMAR CAFÉ”

Na década de 70, Elis Regina gravou uma canção de Edson Alencar e Hélio Matheus intitulada “Comunicação”. A letra é um instantâneo da perplexidade que a expansão dos meios de comunicação e a multiplicação de seus produtos causavam em alguns segmentos da população brasileira. Tal impacto não se confinava ao universo de preocupações de intelectuais e artistas. A expressão “comunicação” penetrava no cotidiano de significativa parcela da população. A mudança do nome da disciplina escolar “Português” ou “Língua Portuguesa” para “Comunicação e Expressão” ilustra essa ampliação dos domínios do termo e da ideia. No âmbito da própria mídia, o programa humoristico "Satiricom", exibido pela Rede Globo, era subtitulado como "a sátira da comunicação". Chacrinha, o popular apresentador de programas de auditório, talvez tenha sintetizado o “espírito do tempo” na frase “Quem não se comunica se trumbica”.

Comunicar e expressar significavam, como pareciam sugerir os livros didáticos de “Comunicação e Expressão” da época, assimilar a presença cada vez mais intensa dos produtos midiáticos no dia a dia. As aborrecidas lições de gramática e de redação foram “modernizadas” pela utilização de exemplos de uso da língua retirados de notícias de jornal, textos de anúncios e letras de canções. E mesmo elementos de uma nascente ciência da comunicação – pelo menos no Brasil – eram apresentados a quem mal chegava às primeiras leituras. Emissor, mensagem, código, canal, receptor etc. tornavam-se conceitos a serem decorados.

A letra de “Comunicação” trata, sobretudo, da sedução e do constrangimento operados pelos anúncios. Esse era o aspecto mais evidente desse novo estado de coisas que se instalava e consolidava capitaneado pela televisão. O produto que mantém de pé todo o sistema midiático – o anúncio publicitário – “convidava” determinados setores da população a ingressar no mundo do consumo. A massa – para usar um termo ao mesmo tempo consagrado e problemático quando se fala de comunicação midiática – ficaria de fora. Premida pela pobreza ela possuiria apenas uma das metades da senha: a fruição dos anúncios. A senha completa – a fruição dos anúncios e a aquisição dos produtos – pertenceria a uma pequena parcela da população. Alguns estudiosos dos meios de comunicação no Brasil identificam aí uma situação paradoxal, pois a expansão da mídia nos moldes comerciais, sustentada pela veiculação de anúncios publicitários, pressupõe a consolidação de um mercado consumidor de proporções alargadas, o que não existiria ainda naquele momento no país. Consumir, nos termos sugeridos pelos anúncios, era – e ainda é – privilégio de determinados estratos sociais.

Mas a sedução dos anúncios, de certo modo, estendia-se a todos os que tivessem acesso a eles. Os novos produtos do “milagre econômico” nacional eram lançados à sanha dos olhares, como registra a canção: “Sigo o anúncio e vejo/ Em forma de desejo o sabonete/ Em forma de sorvete acordo e durmo/ Na televisão”. De fato, o novo padrão de consumo era apresentado a uma população cujo padrão de vida era marcadamente “indiano” com algumas manchas de padrão “belga” (daí a expressão “Belíndia”, cunhada pelo economista Edmar Bacha para descrever o panorama socioeconômico brasileiro). As telenovelas, os programas de auditório, a indústria fonográfica, as revistas ilustradas, todo o sistema midiático, compunham a atmosfera modernizante plasmada magicamente nos anúncios: “Creme dental, saúde, vivo num sorriso o paraíso/ Quase que jogado, impulsionado no comercial”.

Os personagens midiáticos associados ao mundo do consumo – os “olimpianos”, na denominação usada pelo sociólogo Edgar Morin, que atualmente são chamados pela mídia de “celebridades” – emprestavam credibilidade aos anúncios. São elementos importantes na construção da relação entre o consumidor e os produtos, mesmo que os anúncios sejam “vividos” de modo ambíguo, percebidos simultaneamente como sedutores e constrangedores (“Só tomava chá/ quase que forçado vou tomar café/ Ligo o aparelho, vejo o Rei Pelé/ Vamos então repetir o gol”).

E no mundo mágico dos anúncios, onde tudo está ligado a tudo, onde tudo se mistura, onde a lógica é diversa daquela que orienta o mundo desencantado da vida cotidiana de ampla parcela de indivíduos nas sociedades modernas, o telespectador vive as várias dimensões da esfera midiática. Os relatos jornalísticos, os produtos de consumo, os anúncios e as pesquisas de mercado formam o cenário por onde vaga o desejo do consumidor. Desejo que nunca encontrará seu verdadeiro objeto, como advogam vários críticos. O mundo concreto e o sonho midiático se interpenetram, e o consumidor alucina (“E na rua sou mais um cosmonauta patrocinador/ Chego atrasado, perco o meu amor/ Mais um anúncio sensacional/ Ponho um aditivo dentro da panela, a gasolina/ Passo na janela, na cozinha tem mais um fogão/ Tocam a campainha, mais uma pesquisa e eu respondo/ Que enlouquecendo já sou fã do comercial”).

Desse modo, um produto da mídia (a canção popular) refletia sobre as implicações de todo o sistema sobre os comportamentos propostos pela nova ordem do consumo que se instalava. A comunicação midiática começava a se espraiar definitivamente no cotidiano brasileiro.

terça-feira, 19 de julho de 2011

A MÍDIA E OS MONSTROS

Dois episódios recentes que receberam maciça cobertura da imprensa nacional e estrangeira são reveladores da dimensão mítica e da linguagem fabulosa do jornalismo, considerado uma narrativa firmemente ancorada no factual. O primeiro é a matança de doze crianças promovida por um homem que invadiu uma escola municipal no bairro carioca de Realengo. De repercussão mais ampla, a execução por agentes americanos de Osama Bin Laden, líder do grupo Al Qaeda, responsabilizado por atentados terroristas em várias partes do mundo, é o segundo desses episódios.

A matança de estudantes em escolas e universidades tem ocorrido com frequência nos Estados Unidos e, em menor número, em países da Europa. Os executores tanto têm sido pessoas vinculadas às instituições em que isso ocorre quanto estranhos a elas. O motivo alegado para esses atos, via de regra, é algum tipo de humilhação sofrida por essas pessoas, principalmente nas próprias instituições. Outra importante constante registrada pela mídia é o planejamento minucioso dessas ações, que envolve a compra de armas, o treinamento no seu uso, o estabelecimento de uma estratégia e a documentação escrita e em imagem das várias fases da empreitada, inclusive da justificativa e de instruções relativas aos desdobramentos, como o suicídio ou a morte em combate do autor. Dessa forma, esses massacres se caracterizariam como ações extremamente racionalizadas.

De acordo com o noticiário, Osama Bin Laden era membro de uma família milionária que estudou engenharia na juventude e se tornou líder de um grupo organizado numa extensa rede pelo mundo, recrutando e treinando adeptos para cometer atentados contra os Estados Unidos e seus aliados. O arremesso de dois aviões com passageiros contra as Torres Gêmeas, em Nova York, é o mais conhecido deles. Um dos atributos de Bin Laden, ainda segundo a imprensa, seria a capacidade de conquistar seguidores para a sua causa e de convencê-los a cometer até mesmo ataques suicidas. Nas conjecturas sobre a sucessão na liderança da Al Qaeda, destaca-se que o provável novo chefe da organização não teria o mesmo “carisma” de Osama.

O que há em comum entre esses dois personagens – Wellington, o atirador de Realengo e Bin Laden –, é o qualificativo de “monstro” que ambos receberam em vários veículos jornalísticos. Mas nesses dois episódios, em particular, mas também em muitos outros de mesma natureza, o planejamento minucioso, a concepção e a articulação das ações seriam resultado de um trabalho de alto nível de racionalidade e de manejo das emoções, próprios dos seres humanos. Nesse sentido, para além das figuras jurídicas de “homicida” e de “terrorista” relativas aos atos desses indivíduos, a figura do “monstro” merece algumas considerações.

Usado comumente pela imprensa para qualificar o autor de transgressão que se destacaria pela amoralidade, crueldade e/ou extensão, o termo “monstro” promoveria uma “desumanização” do indivíduo na medida em que põe sob suspeita o seu caráter humano. A palavra “monstro” refere-se a seres mitológicos, sendo empregada na linguagem midiática em oposição a “humano”. Além de expressar o grau de indignação moral despertada pelo crime, o qualificativo deixa entrever uma determinada concepção de “ser humano” tomada como referência. O “monstro”, nesse sentido, não seria um “ser humano”, pois não possuiria os atributos que definiriam este último. 

Essa concepção de ser humano está bastante impregnada pela ideia de elevação moral e de perfeição. O ser humano seria dotado de um conjunto de determinadas características tomadas como positivas, algumas inatas e outras adquiridas pela inserção adequada em determinadas instituições. O grau de humanidade medido por essa escala serviu e serve para distinguir e hierarquizar povos, grupos dentro de povos e pessoas dentro de grupos. Talvez o uso mais eficiente e extenso desse mecanismo de exclusão tenha sido feito pelas sociedades ocidentais em suas inúmeras empresas imperialistas. 

Além de expressar a condenação moral do transgressor, a figura jornalística do “monstro” coloca o indivíduo num plano ambíguo. Ele teria cometido um ato condenável ao qual se aplicariam as leis vigentes num determinado grupo humano, mas, esse é o sentido subjacente, ele não é humano, diferindo, portanto, dos demais indivíduos. Uma das conclusões lógicas dessa construção da linguagem mítica do jornalismo é que ao “monstro” as leis que regulam os demais não se aplicariam. Portanto, nesse plano, ou ele não seria responsabilizado pelos seus atos ou poderia ser punido ao arrepio da lei, com a execução sumária, por exemplo. O “monstro” estaria, desse modo, muito mais submetido ao julgamento moral que ao legal. 

Desse modo, a linguagem da mídia, além de por em questão a natureza das leis estabelecidas, tenderia a ocultar um dos golpes mais dolorosos na autoimagem dos indivíduos das sociedades modernas, o de admitir que não há um padrão definido de humanidade, admitir que o mais abominável dos criminosos é uma das possibilidades do ser humano.        

JORNALISTAS SABEM TUDO OU O MUNDO SEGUNDO A IMPRENSA

Nas últimas semanas, tem sido um assunto constante na imprensa em geral o aumento das taxas de inflação no Brasil, depois de um período de relativa estabilidade. Reportagens, colunas e editoriais dedicam-se a explicar ao consumidor de notícias o que está ocorrendo e, muitas vezes, a expor quais são os fatores que provocam o fenômeno de alta generalizada dos preços e como os agentes envolvidos – principalmente o governo – devem proceder para controlá-lo.

Há certos assuntos como esse que parecem despertar nos jornalistas uma compulsão por revelar as verdades do mundo e a receita da vida. Os jornalismos político e econômico, em particular, são terrenos férteis para o discurso clarividente e de tom prescritivo. Quando se trata de esportes, notadamente o futebol, essa tendência se verifica ainda com mais intensidade. Mas esse é um caso à parte, uma vez que, por mais significativos que sejam para determinada parcela da população, raramente os esportes causam impacto comparável ao das esferas da política e da economia, ainda que estejam intimamente ligados a ambas.

Sobre as intrincadas relações de poder do que se convencionou chamar de política, são comuns as análises e a oferta de soluções baseadas num ideário gerencial. Muitos jornalistas dão a impressão de saber resolver com meia dúzia de ideias vertidas em poucas linhas questões seculares de governo e de Estado correntes nos mais diferentes contextos históricos. Tudo se passa como se tratasse apenas da adoção de um determinado programa de ação que lhes parece evidente, e que deveria assim também ser percebido pelos agentes envolvidos, a começar pelo destinatário das notícias.

Numa revista como Veja, por exemplo, é usual encontrar diagnósticos da cena pública brasileira acompanhados de receituários. Reportagens sobre o que se consideram mazelas nacionais – corrupção, saúde, educação, segurança pública etc. – costumam servir também para demonstrar a incapacidade e, por vezes, a dispensabilidade das instituições envolvidas, sejam elas quais forem. A imprensa, nesse aspecto, torna-se repositório daquilo que as instituições, os agentes e o consumidor de notícias deveriam saber para bem proceder. Tudo é muito claro, direto e supostamente eficaz, como na linguagem dos manuais técnicos. Muitas vezes os imponderáveis dos conflitos variados de interesses e de pontos de vista subjacentes a esses problemas são reduzidos a uma incapacidade dos envolvidos de fazer a coisa certa.

Os assuntos classificados como econômicos também não escapam a essa tendência. Digam respeito à gestão de recursos dos governos e empresas ou à esfera privada dos endividados, há sempre uma solução inequívoca. Na maioria das vezes inspirados em teorias econômicas conservadoras, repete-se incessantemente que para evitar a alta de preços o recurso é promover uma recessão, apesar das suas conseqüências desastrosas. Quanto à economia doméstica, vicejam em todas as mídias, mesmo em programas de televisão de grande audiência como o Fantástico da Rede Globo, os consultores com suas planilhas, prontos para ensinar o que fazer com o dinheiro, como consumir e como poupar para gastar mais adiante. As decisões são bastante racionais, técnicas, sem conflitos insolúveis, livres das paixões, justamente numa arena governada por desejos e fantasias.

Também nessa área, algumas poucas ideias alinhavadas numa coluna diária pretendem dar cabo de densos fenômenos como desenvolvimento econômico, mercado de trabalho ou inflação. E aí também se repete a tendência à univocidade. Diferentes autores em diferentes veículos escrevem quase a mesma coisa sobre o mesmo assunto. E, de modo geral, fazem afirmações que podem deixar um hipotético consumidor de notícias mais atento desconfiado quanto à sustentação delas. Mais ainda, despertam a suspeita sobre a que realidade se referem.

Um tema recorrente nos últimos anos – o “apagão de mão-de-obra” – ilustra a questão do tom prescritivo, da univocidade e da distância entre algumas áreas do jornalismo e o cotidiano do consumidor de notícias. A fórmula da escassez de trabalhadores qualificados e do entrave que isso significaria para a dinâmica da economia é repetida com constância. Quase nunca ela é posta em confronto com dados empíricos sobre multidões de desempregados ou com a estrutural tendência de contenção dos salários que a reserva de mão-de-obra permite, nem se questiona o que, de fato, diz esse diagnóstico, possivelmente oriundo das consultorias e departamentos de RH. Mas a solução é sempre evidente e única: qualificação da mão-de-obra, seja lá o que isso significa.

Com respostas prontas e sem arestas, os jornalistas não estariam escrevendo para quem busca informação – o receptor típico do ideário profissional –, mas para quem se predisponha a compartilhar das mesmas crenças. A dúvida, a incerteza, o olhar distanciado e a desconfiança em relação aos assuntos de que tratam não parecem ser tolerados. O jornalismo, nesse sentido, deixa de ser uma prática discursiva e passa realmente a acreditar que encarna o papel tantas vezes a ele atribuído de Quarto Poder num regime democrático. Amparado em dogmas e fórmulas, no entanto, o jornalismo se inspiraria muito mais em princípios teocráticos de iluminação e revelação.